Versão genérica

Hanna

ATENÇÃO, esse texto não é recomendado para pessoas sensíveis ao luto

Lembro bem do momento em que te vi pela primeira vez. Minha irmã voltou da casa do meu tio e anunciou "temos dois cachorros!" O plano era só um. Tanto que as atenções todas, no começo, foram pra John, O vira-lata com características de Weimaraner, cinza, brincalhão, feliz. Ele tomava o ambiente como uma celebridade. Você, não. Preta, magrinha, meio desengonçada, completamente paralisada, sem compreender a situação. Mas eu te vi e pensei "bichinha, en en". E assim nos aproximamos naqueles primeiros minutos. Tentei ganhar tua confiança. Não foi fácil de cara. Com os dias, melhorando. A carência, o drama para disputar a atenção. Sempre meio deixada de lado. E aí passaram semanas e meses. Eu disse "mainha, temos que castrar esses cachorros". Era risco demais deixar um macho e uma fêmea trancados juntos. Era um adolescente, não fui ouvido. Veio a gravidez e, com ela, a doença de John. Era um desespero ver o sofrimento, Até que, se foi. Na dor, ainda tinha tu E outra filhote que ninguém quis adotar. A pequenininha, nomeada Cotoco, até meio sem querer. E ano após ano latindo, correndo as escadas e invadindo meu quarto pra lamber meu pé de manhã. Pense numa raiva. São João e Ano Novo na sala, só nós 3, tentando ignorar os fogos. Os xixis que tu deixava no meu quarto. Se fazia de santa, mas era mesmo quem aprontava. E cada menstruação canina eu falava "mainha, tem que castrar essas cachorras". Não importa se eu era adulto, não era ouvido da mesma maneira. São linhas que não posso reescrever. Não há como voltar ao começo. Nenhum poema ou canção pra representar uma vida Que me deixou tanta dor ao partir E um sorriso no rosto enquanto esteve aqui. Vai fazer 1 ano em pouco tempo Desde a última vez que nos vimos. Tu ainda era mais ou menos a mesma. Uma grande cirurgia a mais, o câncer veio. Meus avisos se confirmaram. Mas os latidos precipitados, as manias acompanhando mainha pra todo lado, isso não mudou. 3 anos é muita coisa pra ficar longe de um cachorro. Idosa, raciocínio lento. Uma companheira pra própria filha. Espero que ela não vá embora de forma, também, assim repentina. Repentina, nem tanto, que já se anunciava pelo que eu mesmo dizia E que já não pode mais se remediar. A vida é uma correnteza em direção ao fim E contra esse fluxo, não se pode nadar.

Epílogo:

Trabalhei a última hora com dor e frustração. Raiva. Esqueci detalhes, não visualizei coisas importantes. Parei numa conversa que não queria. Perdi 10 minutos preciosos sem saber. Talvez eu não quisesse voltar pra casa. Talvez eu não quisesse chorar no caminho. Não queria saber como foi. Mas eu sei que quem estava em metástase não foi quem sentiu o maior dos alívios. Todos esses anos de responsabilidade. O fim era o que ela queria. Tão fria e cruel Como quem posta uma foto de xícara de café em padaria Dizendo que assim o dia amanhece melhor.