Política no meu filminho de boneco
Já falei sobre isso, mas repito que continuo minha maratona de filmes de X-Men nessas últimas semanas. Ontem fechei a trilogia original, dos anos 2000. Há muito tempo não assistia aqueles filmes, mas lembro que nunca entendi profundamente os conflitos. Ajuda ter 8 anos e absolutamente ninguém pra te explicar os subtextos e metáforas, bem como tão pouco conhecimento político na época. Ontem, bateu diferente.
Pra começar pelo começo. A primeira cena do primeiro filme, depois de umas frases de Xavier falando sobre evolução, parece uma CPI. Jean Grey faz um discurso pra senadores dos estragos unidos sobre como mutantes não são uma ameaça e como devemos acolhê-los. Um dos senadores não quer nem saber.
Senador: Obrigado, Senhorita Grey! Foi muito educativo. Porém, falha em tratar a questão que é o foco desta audiência. Três palavras: mutantes são perigosos?
Dra. Jean Grey: Essa pergunta é injusta, Senador. Afinal, a pessoa errada atrás do volante de um carro pode ser perigosa.
Senador: Bem, é preciso documento para dirigir.
Dra. Jean Grey: Mas não para viver.
Quase soltei um "UOU" à lá Luiz Carlos Jr. na hora. Agora eu paro pra refletir: como passamos disso pra filmes de herói tão caretas hoje em dia? Tudo é antipolítica, corrupção, o homem branco ideal que resolve tudo sozinho. Enfim, conversa pra outra hora. Tem mais coisa que me chama atenção nesse primeiro filme. Revoltado com a postura do Senador do diálogo acima, Magneto o sequestra e o transforma em mutante. Irônico. Nessa cena eu só ri bastante, sem pena nenhuma. Não preciso nem dizer que os discursos públicos do Senador mudaram instantaneamente, né?
Outra coisa sensacional que acabamos perdendo com o tempo é a equação entre tempo de tela e efetivamente contar uma história. O trabalho desse primeiro filme é apresentar as personagens e seus dilemas pessoais, apresentar o contexto da sociedade desse mundo e preparar o roteiro pra uma briga final. Fim da história. Sem enrolação. Sem 47 cenas de briga só pra encher de efeitos especiais, explosões, porradinhas e muita edição.
Nesse sentido, X-Men 2 (2003) talvez perca um pouco a mão. É um filme mais longo, com elementos demais no roteiro e pouco foco onde importa. Depois de um primeiro filme que se encerra com Charles conversando com Magneto e dizendo que tem alunos prontos pra enfrentarem uma guerra, ver os mesmos 6 rostos brigando pra sobreviver aqui é meio broxante. Por outro lado, o que já partia do princípio de ser uma briga política, agora escancara também a porta contra a LGBTfobia.
"Você já tentou... não ser um mutante?"
"A gente ainda te ama, filho. É que esse problema de ser mutante é complicado..."
Essas frases já são inacreditáveis. Mas meu sangue ferveu mesmo quando o irmão de Bobby chamou a polícia pra denunciar o próprio irmão mutante. No panorama geral, o dilema em si, muda. Antes era sobre tentar ficar bem na fita a partir do lema "nem todo mutante". Mas a sociedade ali já estava "mas sempre um mutante" demais pra querer ouvir qualquer coisa. Xavier quase aniquila todos os mutantes que existem. Depois, quase aniquila todos os humanos. Fiquei refletindo como são questões surgidas e resolvidas de forma genuinamente estragonidense. O constante "nós contra eles". A pintura vilanesca imposta sobre personagens que não atuam na perfumaria que a gringaiada quer, como Magneto. Tanto rodeio pra, no fim das contas, tudo ficar como já estava.
Até as animosidades escalarem de vez e chegarmos em O Confronto Final (2006).
Tempestade: Nós vivemos uma era sombria: um mundo cheio de medo, ódio e intolerância.
De cara, a presença de Fera me chamou a atenção. Tentando colaborar e argumentar de dentro das estruturas de um governo que tava planejando o tempo todo exterminar os mutantes. Ora ora ora quem poderia imaginar. Com isso, não dá pra tratar como loucura nem perversidade o movimento de Magneto, reunindo mutantes pra explodir a ilha de Alcatraz e encerrar a produção da "cura" que revertia os poderes de todos os mutantes.
Mutante aleatório: Essa cura é voluntária. Ninguém tá falando de exterminação.
Magneto: Ninguém nunca fala. Só fazem. E vocês continuam com as suas vidas, ignorando os sinais ao seu redor. Aí então, um dia, quando os ventos estiverem calmos e a noite cair, e eles vierem atrás de vocês. [...] Aí é que vão perceber que, enquanto vocês estavam conversando sobre se organizarem e comitês, a exterminação já tinha começado. Não se enganem, meus irmãos. Eles vão matar primeiro. Eles vão forçar a cura em nós. A única pergunta é, vão se juntar a mim e lutar ou esperar pelo inevitável genocídio? De que lado vocês vão ficar - dos humanos... ou do nosso?
Dá pra ser mais direto que isso? Talvez só quando Magneto foi perguntado sobre sua "marca de mutante" e ele mostrou a tatuagem que recebeu em algum campo de concentração durante a 2ª Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, ele é tratado e projetado como o vilão da franquia... Irônico. Esse filme ajudou a consolidar duas visões que eu vinha construindo a partir dos dois primeiros.
Charles é um personagem muito problemático. Lembra um pouco essa coisa da esquerda cirandeira, de reformismo, de "resolver no diálogo" e colocar uma flor no cano de uma 12. Tudo bem, ele acolheu vários mutantes. Faltou preparar um pouco pra vida real e deixar de lado o bunda-molismo reformista típico da esquerda dos estragos unidos.
Há uma tentativa muito nítida de solidificar a narrativa de que Charles está para MLK assim como Magneto está para Malcolm X. E isso é um problema gigantesco. Começa no primeiro filme, quando Magneto solta um "by any means necessary" na última cena. Só fica pior com pessoas envolvidas nas HQs e filmes da franquia mencionando a relação dessas figuras históricas com esses personagens e isso definitivamente explica pra mim a razão pela qual não consigo enxergar Magneto como vilão 100% do tempo. Aí ele mata pessoas e usa mutantes e eu fico "ah, é!! Caralho tinha esquecido!". Mas o estrago já tá feito e consolidado com tanta referência e o resultado é a vilanização, sobretudo, de Malcolm, enquanto quem consome as obras esquece quem é o inimigo real
(o Flamengo).
Essa última constatação, junto com a leitura do texto linkado, manchou demais a experiência pra mim. É uma marca que fica e que eu não consigo mais desver. X-Men queria ser sobre a luta de todas as pessoas que sofrem discriminação, preconceito e opressão. Homens brancos pegaram a caneta na mão e disseram "segura a minha cerveja". Assim nasceu uma trilogia que continua refletindo não como as minorias se sentem, mas como a brancaiada enxerga a maneira como as minorias se sentem. Irônico.