Versão genérica

Você é mesmo ele?

Quando eu descobri que o segundo filme do Coringa ia ser um musical, fiquei muito animado. Você que está lendo provavelmente odeia musicais, muita gente o faz. Experiências e gostos são particulares, então tudo bem. Eu não os assisto com frequência, mas gosto muito. E com a possibilidade de trazer um filme de ação, denso em todas as problemáticas sobre saúde mental e falta de suporte de saúde nos estragos unidos, ainda mais adicionando outra protagonista, tão ou mais insana que o próprio Coringa, me deixou altamente intrigado. Sabendo que as pessoas tinham odiado, me fez ter mais esperanças ainda (levando em consideração que a opinião generalizada a qual eu tenho acesso é majoritaria, e infelizmente, contra o gênero).

Eis que começa o filme. Os primeiros 10 minutos deixam uma ideia nítida: Arthur Fleck, o Coringa, está triste na prisão. Não fala com os guardas, não faz piadas, não sorri. Até ele passar ao lado de uma sala onde detentos de outra ala estão praticando canto, onde avista Harley Quinzel. Uma papagaiada gesticulada por ela basta para ele desenvolver o interesse. Até aí, vai. Mas e a música? Se perdeu na primeira cena, uma recapitulação rápida do filme anterior (precisava?), feita em cartum para tentar, agora (talvez até tarde demais), representar uma dualidade, uma separação entre as identidades de Arthur Fleck e Coringa. E era um musical? Bem, tocava uma música e o Coringa cantava ao vivo, em rede nacional. É o suficiente?

Enfim, o roteiro dá um jeito de Harley e Arthur se reencontrarem, via o policial chato que resolveu que queria cantar de repente. Só não achei um pulo tão absurdo porque ele já vivia cantarolando e assobiando desde a primeira cena. Eles aproveitam o momento para conversar diretamente pela primeira vez, ela elogia ele, ele se enche de vida e, na cena seguinte, recebe a notícia de que a promotoria pedirá que ele seja condenado à cadeira elétrica. Um policial pergunta: "Viu, Arthur? Você vai pra cadeira elétrica! Como se sente?", com um sorriso enorme no rosto. Arthur então começa a dançar e cantar. Outros detentos, ao redor, começam a gesticular, mas não fica tão nítido se eles estão fingindo que estão tocando instrumentos (AIR GUITAR!!!) ou se estão apenas curtindo a vibe. Pouco importa. O que poderia ter sido o primeiro grande momento do filme se revela apenas uma divagação na cabeça do protagonista.

E esse é que é o problema. É noite do cinema! Harley e Arthur, juntos outra vez, assistindo filminho. Mas ela tinha planos de fugir com ele e taca incêndio na sala, que se espalha pela prisão. Começa uma cantoria, eles dançam timidamente em poucas sequências tentando fugir até perceberem que não conseguirão. Talvez essa seja a melhor cena, a mais parecida com a ideia que eu tinha de um musical pra esse filme.

A partir daí, é ladeira abaixo. Esse suposto musical começa a enfiar cenas desconectadas com o momento do filme. Coringa e Harley dançam no topo de um telhado, ela com um vestidão e ele todo maquiado, de terno. Acho que era para ser da imaginação dele (?). O próximo momento de cantoria é quando ele dá uma entrevista, de dentro da prisão. O jornalista começa a fazer perguntas e Arthur perde a calma e, a partir de certo ponto, começa a cantar, se declarando para Harley. É o suficiente para ser um musical?

Aí vem o julgamento. Chato, chato, chato. A advogada tenta convencer Arthur de que Harley tá fazendo ele de otário (tava mesmo). Outra vez ele vai pra uma fantasia de que eles tão num programa de auditório. Cantando. Ele volta pra prisão. Ela vai visitar. Se encontram, conversam, se reconciliam. Ela canta para ele. Isso é um musical? Meu cu que é um musical, porra.

E tome julgamento de novo. E tome cena completamente desconexa, supostamente da imaginação dele, cantando outra vez. Até de repente a cena ser dentro do julgamento e ele pegar um banco pra macetar a cabeça do promotor com um banco. Sequer dá para se empolgar, logo depois se revela que realmente era apenas imaginação.

O final é bagunça. Ele abandona a advogada, se pinta de Coringa e vai lá falar besteira. Sequer consegue ser engraçado. E tome cena de cantoria completamente desconectada do filme. Bla bla bla ele é espancado na prisão, ele encerra os argumentos de defesa, liga pra Harley e canta pra ela no telefone. ZzZzZzZzZzZz. A última cena é uma bosta, dane-se essa porra.

Tudo isso pra dizer que: não, não é um musical. Eu me recuso. As músicas não acompanham os diálogos, nada de interligação de fala e canto, tem pouquíssima dança e, principalmente, falta o molho. Reduzir "musical" a ter música atrelada aos diálogos, inclusive, acho que é reducionista. Musical também é exploração da imaginação de quem escreve. É brincar com elementos visuais, referências. É deixar o surrealismo entrar, uma explosão do imaginário, uma dose gigante de realismo fantástico. É fazer quem assiste comprar que importa pouco se aquilo está acontecendo mesmo da maneira como está acontecendo. Perguntar "aquelas pessoas simplesmente pararam na rua e começaram a dançar? Todo mundo sabendo a mesma coreografia?" é estar à margem do que importa.

O que importa é que, antes de tudo, Coringa: Delírio a dois, é um péssimo filme.